quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Maria puta de Lisboa

Estou a pensar que significa voltar a ver-te.
Sempre te encontro quando chove e o fumo do
café se parece a um génio. Apetece-me chorar e
não sei porque o faço. São-me indiferentes as
gotas de limão que usas ou o golpe que fazes
nas veias para que me comova da tua solidão.
Agora eu finjo todas as formas de teatro me
foram úteis para ficar nas ruas, onde me vendia.
A minha família desejava que a minha vida fosse
tão imaculada como um cu virgem. Estou a pensar
que tu não podias ficar, a mentira faz mexer os pés.
Os livros mentem, as obras de arte também e eu,
levanto o tampo da sanita e cago esta presunção
de festas com champanhe e os prémios dos escritores
importantes.
Estou a pensar que todos os dias vejo Deus
e eu pergunto-lhe como se lhe perguntasse
as horas, se ele gosta das putas, se ele ama
as putas acima de todas as coisas. Estou aqui
embrulhada em histórias fingidas, pensei consultar
um psicólogo, eu Maria, natural de Bragança, violência
no corpo e na memória, não tenho filhos, não tenho
homem e aqui estou a contar esta minha odisseia a que
dei o nome: mulher com sémen nos olhos.
Acabei de chegar á capital, na terra de onde
venho o trabalho é pouco e o senhor Januário
prometeu-me um lugar de corista no teatro; para ele,
eu era um talento de corpinho feito, ele dava ares
de muitos conhecimentos, conhecia ministros jogadores
de futebol e, passado quase um ano, divido um velho
quarto com um travesti , a Rosário que é sero positiva
e dá á força toda no cavalo.
Atirada á rua ganho a vida a fazer broches dentro de
ferraris e outros carros de marca, ás terças feiras
canto o fado vadio numa taberna, o senhor Januário, o
chulo, dizia que eu havia de ser o orgulho de minha mãe.
Na taberna onde canto o tal de fado vadio conheci um
poetas que quer escrever para mim, ele é um velho doce.
Eu não sei o que ele escreve, mas se o que ele escreve
for o sorriso dele vou gostar do que escreve. Na estante
do meu quarto tenho alguns livros. Só não gosto de livros
católicos, as igrejas só servem para dormir; quando olho
a virgem que tem o meu nome e vejo as pessoas a darem-lhe
moedas, digo-lhe que na rua ganhava mais e que o pecado é
uma treta, basta fechar os olhos e tudo se
converte em virtude.
Pego na mala e apanho um táxi, estou no ano de 89,
da janela do táxi vejo uma carrinha da policia com
putas lá dentro. Muitas vezes me encontrei na mesma
situação, sentia-me uma vaca dentro de uma camioneta;
sinto os pés doridos, peço para parar uns minutos
numa farmácia, o empregado parece um alfaiate a
tirar-me as medidas.

- Que quer?
- Tenho os pés doridos.
- Aqui tem.
- quanto é?
- 250 escudos.
Depois volto para o táxi e, passados uns minutos estou
em casa. O prédio é velho e cheira a mijo de rato.
A entrada não tem luz, por isso subo as escadas com
cuidado, acendo o isqueiro e vejo restos de seringas
espalhadas. Rosário está na casa de banho a cortar o
cabelo, ouve-se uma música flamenga, a voz de Camaron
da ilha.
- Há café...- grita-me ela
- vou para a cama.
- estás bem?!
- sim e tu?
Fiz dinheiro para a dose e para os cigarros.
- Amanhã é dia de pagar a renda.
- Eu sei, antes de sair deixo a minha parte debaixo
da porta do quarto.
- Está bem, até amanha.

Rosário costuma ir ao domingo ao cemitério, diz que
ai pode tomar chá com a alma da sua avó.
- Ó Rosário, as almas não bebem chá.
- Se cheiram incenso porque não podem beber chá?
- Não se pode fazer nada com os mortos.
- Só morre aquilo de que não se gosta...
- E que coisas morreram para ti?
- sei lá eu!
- bem vamos abrir uma garrafa.
- vamos beber o sangue das nossas vidas.
- á saúde
- á saúde.

Rosário, por causa da sua doença se encontrar nas
últimas teve de ser internada.
Eu mudei de casa, uma assistente social arranjou-me
um trabalho de recepcionista na santa
casa da misericórdia. Agora moro numa casa com
quintal, moro eu e o meu gato. Ontem recebi uma carta
da minha mãe. Como pensa que eu trabalho no teatro,
pede que lhe envie entradas para ir ver a revista,
eu escrevo que vou viajar, que vou em tournée, mas
prometo-lhe que quando regressar lhe ofereço as
entradas. Ofereço-lhe também um estojo de beleza.
Na última carta contava-me que o meu pai lhe batia,
não conseguia parar de beber.
O pai de rosário também batia na mãe e, quando esta
era pequena, por diversas vezes a tinha violado. Faz
uma semana que ela morreu. Agora imagino que está a
beber chá com a alma da sua avó. Ontem, enquanto
escutava a música do amolador vinha-me ao pensamento
que a morte tem a música da chuva. Pensar isto não
aquece o coração, se ela agora aqui estivesse
tentaríamos recomeçar. Ou talvez seja uma desculpa
para se fugir áquilo que tinha de ser vivido.

Rosário tu nunca amaste ninguém, mas também nunca
foste amada por ninguém ou não houve tempo para que
descobrisses as coisas que demoram tempo. Penso
ter-te conhecido bem, mas, nao estive na tua pele,
as nossa dores são coisas muito nossas e não existem
medidores capazes. Podia escrever-te uma carta, mas
não há o correio das almas. Tenho o gato sobre o meu
colo, limpo uma pequena lágrima ao seu pêlo e fico
quieta, como se eu fosse ele e o mundo tivesse parado.
A nossa vida é um muro branco que apetece sujar ou
simplesmente tornar o seu aspecto uma coisa mais
autêntica do que era antes; podemos imaginar um homem
de fato branco, um tipo como o senhor Januário que está
podre e parece casto nas finas maneiras de se insinuar
no primeiro encontro, ele está filiado num partido de
direita, tudo o que foi construído ilegal, toda a sua
riqueza pessoal se fez na angariação de mulheres e no
tráfico de droga.
Agora veio a lume o seu envolvimento no lado escuro do
futebol. O senhor Januário terá sempre a protecção dos
seus padrinhos, a familía politica não o vai deixar cair
em desgraça. Ninguém está limpo. Eu tento recomeçar,
não é sempre por motivos pesados que vamos parar aquilo
que outros adjectivam de pior. O pior pode ser a moral,
a religião, o pior pode ser não se conhecer o lado escuro
e levar-se com luz demasiado forte nos olhos. Agora me
lembrei que são poucos ou nenhuns os retratos de infância,
parece que o vento leva a infância como leva os papéis do
chão, parece que leva as roupas do corpo, o gato parece
que me percebe. Ele é o meu homem, o meu amor verdadeiro,
imagino que espalha a cinza da lareira sobre os meus
cabelos, parece um ritual ortodoxo, finjo que sou a
Madalena apedrejada nos prédios e nos centros comerciais
e que ele é um cristo ágil, se escapando para os telhados,
perdoando aos homens que caem na tentação de representarem
demasiado bem o amor. O meu trabalho decorre normal, costumo
encontrar por perto o velho poeta, costumamos conversar um
pouco, as nossas conversas são o assunto dele que é a poesia.
Fala-me do Luis Pacheco que é um poeta surrealista que anda
a comer dos caixotes do lixo e que é o poeta mais puta de
lisboa, ele e o cesariny são todos a melhor puta de poesia.
Conto-lhe que ás vezes escrevo, o meu sonho era o teatro
e ele elogia-me a voz, que tenho uma garganta de água tão
cristalina como a garganta do sol. Eu desato a rir e bebo
o meu café. Olho a rua e lembro-me que tenho de passar pela
mercearia da Rosa e comprar comida para o gato.
O velho poeta olha-me e toca-me as mãos e parece que
acrecenta vida, vida verdadeira aos anos que julgava ter
perdido, tenho umas rugas mas sinto-me bonita, quando
recordo certas passagens penso que foi um comboio rápido
que passou e a memória parece uma árvore que caminha e
depois desaparece. Não sei se tu acreditas no amor, é
preciso não recusar a entrada do sol. a minha mãe parece
a figura em forma de escuridão. Não é capaz de uma lágrima,
não sabe fazer um sorriso verdadeiro, podia convidá-la a
passar aqui uns dias, mas estar com ela ainda vai representar
muita tralha de vida que não gostaria de voltar a confrontar,
não queria velhos ódios. Quando me resolver, vou visitá-la ou
envio-lhe dinheiro. Seja como for, nao queria insistir na
tentativa de me sentar á mesa fingindo a Madalena bem comportada
da sagrada familia. A ideia de ter contas a ajustar foi há muito.
O amor nao se fabrica, isto não o posso dizer á minha mãe, parece
que estar aqui, ter familia , enfim faça-se o que se fizer
tenha-se o que se tiver é da nossa responsabilidade. podia
dizer que cada um tem de pagar as suas contas, mas a indiferença
é uma conta elevada, fingir que os outros não existem, que as
nossas questões são só nossas torna mais agudas as nossas dores,
vou tentar não magoar a minha mãe, tentar não representar
demasiado bem. vou preparar uma comida rápida e vou sair onde
há uma feira do livro, vou caminhar um pouco a pé. Outro dia
passei por um padre, depois ele entrou no elevador e eu disse
para mim que era só carregar no botão e estava no céu, ele tinha
um ar bastante conservador, se calhar pensa que os elevadores
são obra do diabo. Eu estava com vontade de me despir á frente
dele, de o provocar. A tentação também está num elevador, o
padre parece que tem trinta anos, é magro de cara, uma cara
de palerma, se eu fosse o cristo havia de cair da cruz de tanto
rir. Agora vou arrumar um pouco a casa, é mais dificil arrumar
a vida, fiz um arranha céu de loiça, tantos os dias que fiquei
sem vontade de arrumar ou lavar, a vantagem de viver sozinha ou
a desvantagem.
Quero contar-vos que o poeta me tem feito propostas de casamento,
não de um modo directo mas dá a entender. Eu já tive muitos
homens e ás vezes não sei se há muita diferença entre ser-se
puta ou ser-se domAstica, parece que somos todos grandes putas.
Até tu digo eu ao meu gato. Se eu escrevesse um livro, podia
ser sobre a prostituição no reino animal. Vou, pois, arrumar a
casa. Depois ponho-me a dormir, o gato costuma adormecer comigo,
imagino ele a ter os meus sonhos e eu os dele... eu a ter os
sonhos dele vou andar a cheirar a peixe e ele vai cheirar a puta,
um gato a cheirar a puta.
Ainda estou a pensar no velho poeta, vou encontrar-me com
ele e se ele falar, embora disfarçadamente, em casamento vai
ficar a saber que sofro de uma doença incurável que faz os
homens infelizes. Ainda tenho uma alma de puta, não é pelo
dinheiro dos homens, é pelos segredos deles. Na cama
apanham-se muitos segredos de estado. O casamento é uma regra
e eu quero dar-me selvagem, perceber a mentira e a ilusão dos
homens. Sei que exagero em relação ao homens, sei que, quando
nós mulheres nos demoramos com eles, quando permitimos que
saia de dentro deles aquele orgulho de nos conquistarem como
quem conquista o mundo, acho que as mulheres são conquistadas
pela solidão deles. Lembro-me de um cliente meu que pagava
para falar da mulher e dos seus dois filhos, dizia que amava
tanto a mulher que não a conseguia tocar, fizera com ela amor
apenas duas vezes, depois pagava pela conversa e pelo sexo.
Outro dia vi-o de longe, estava com a mulher e os filhos, as
crianças eram bonitas, penso que eram felizes, naquele dia
fazia muito sol, ouvi-as gritar e parece que aquela vida se
misturava no brilho do sol, era o sol a gritar com a vida, a
pedir mais uns sorrisos, mais uma réstia de vontade. Olho á
minha volta, parece que o rio afunda o passado, parece que
me apetece uma sinfonia e uma profunda tristeza é o vicio
dos dias. Faz meses que a Rosário morreu, de seu verdadeiro
nome Alberto, ainda tenho na minha mala de mão, além do
verniz e do baton, uma fotografia dela. Sei que quando a
mesma foi tirada tinha 14 anos, está vestido com uma saia
escocesa e parece que tem na expressão dos olhos vontade de
dançar; quando era criança andou a aprender ballet com uma
professora russa, como a família não tinha muitos recursos,
uma senhora pagava-lhe as aulas, passados uns dias a
senhora foi atropelada e o ballet ficou esmagado nas rodas
de um carro. Quero eu dizer, atropelou-se uma grande
oportunidade ou quem sabe a sua vida não seria o que tinha
de ser.
Rosário tu eras uma pobre e já te imagino a dançares em
pontas com o desequilíbrio do mundo. Agora, raras vezes
encontro o velho poeta, ás vezes está sentado nas escadas
da Basílica da Estrela, anda sempre com um caderno, já
tentei ler a sua letra, parece caligrafia de médico,
disse-me que esteve para estudar medicina, pensou ser médico
dos olhos, confidenciou-me que gosta de olhos azuis, que
gostava de ser o médico do mar e de tratar os olhos azuis do
mar quando lhe aparecesse a doença da tempestade. Eu fico a
olhá-lo, parece que os poetas são pessoas difíceis, as
palavras não são simples como as raízes que ficam na terra
e dão sem explicação flores á disposição dos nossos olhos.
Despeço-me dele e apanho o eléctrico, vou descendo a rua e
reparo no fumo que sai de uma chaminé, parece a fábrica das
nuvens, se calhar vai chover, depois fecho os olhos e
adormeço um instante.
A cidade move-se em mim, tão intima e indiferente, como as
palavras fora dos livros e das pessoas. O poeta acena-me.
O acenar das suas mãos ondulam como asas e eu dou uma
gargalhada e o mundo interior ri. E desato a chorar. Era
como se tudo aquilo que tentasse reconstruir desabasse,
acho que não quero reconstruir coisa nenhuma, acho que
não quero voltar ao começo, sempre que me apaixono, sempre
que penso em alguém, sempre que fecho os olhos vejo mais
nitido dentro de mim e, ao mesmo tempo, não percebo nada.
Escrevo-te esta carta, na verdade ainda é um rascunho, o
cesto dos papéis tem outras, parece que são bocados de
vidas rasgadas, rasgadas mas não apagadas, a memória é
uma doença que não se cura. Ontem lembrei-me daquela
tarde de Maio em que tentei o suicídio, lembro-me de
ouvir a Rosário contar que me fez beber azeite e que
depois até parecia que tinha vomitado a criação, devo
ter expulsado muitos demónios. O velho poeta quando lhe
contei esta passagem da minha vida diz que a morte faz
subir a febre á vida, eu penso que morrer é uma fuga,
pelo menos aquela encenada pelas nossa vontade. Sei que
não tenho respostas, sei que do outro lado não existem
segredos desvendados.
Filosofias á parte, é dentro de ti e de mim para o mal
e para o bem. Eu Maria, nascida em Bragança, te dedico
estas palavras e um dia se nos encontrarmos, vamos
lembrar ou vamos esquecer ou, fazer o que for melhor
para que o chão não nos puxe os pés.

lobo 05

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